Nos últimos meses, jovens timorenses chegaram a Portugal às centenas, talvez milhares. Dizem ter vindo para “trabalhar na agricultura”, mas ao fim de poucas semanas viram-se sem trabalho nem teto, a dormir na rua, enquanto esperam que “o patrão” os venha buscar. Em Lisboa juntam-se no Martim Moniz. A PJ está a investigar.

ortugal não é o que esperava. Quero trabalhar mais, mas o patrão diz que já não tem trabalho. Quando falo para Timor, para a minha família, digo que não há aqui trabalho, para dizerem a toda a gente para não vir mais ninguém, porque é mentira.”

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Bernardino tem 22 anos. É, no grupo de cerca de 10 timorenses que o DN aborda no extremo esquerdo da praça, junto ao Hotel Mundial, o único que diz saber falar “mais ou menos” português.

E também, ao longo da reportagem – outros acabarão por aceitar falar ao jornal -, o único que afirma querer regressar a casa: “Há muitos problemas com o patrão, muitos problemas. Quero ir-me embora, mas não tenho dinheiro para voltar.”

Ao contrário, a maioria dos naturais de Timor que ali falaram ao jornal querem ficar. Mesmo admitindo não ter onde dormir senão aqui, no chão da praça, ao lado do seu monte de malas de viagem, ao relento nas noites cada vez mais inclementes (na segunda-feira, quando choveu e a Baixa ficou um rio, refugiaram-se sob as arcadas das zonas comerciais que ladeiam a praça).https://fd20b7f68611c7dbf46ae9e902a2bd00.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

E quando interrogados sobre quanto tempo preveem ficar ali nestas condições, dizem sempre a mesmo: “Ninguém sabe.”

Outra coisa que nenhum esclarece é a razão pela qual se juntaram – Bernardino diz que são “mais de 150, homens mas também mulheres” – nesta zona da capital (há quem, nas autoridades municipais, estime serem mais de 300).

Poderia dever-se ao facto de fazer parte do percurso das carrinhas de distribuição de comida que dão apoio aos sem-abrigo, mas das pessoas entrevistadas nenhuma admitiu receber alimentação dessa proveniência.

Perguntado sobre se costuma receber refeições das tais carrinhas, Bernardino primeiro parece não perceber do que se está a falar, depois diz que não: “Compro uma caixa de arroz na loja. Só como uma vez por dia. E temos muito frio, há muitas pessoas doentes.”

“O patrão esteve ontem aqui, diz que falta pouco”

No início da conversa o entrevistado está, como os outros compatriotas, desconfiado: não quer fotos, questiona qual o objetivo e falará muito tempo com a jornalista até finalmente dizer como se chama.

Terceiro de sete irmãos, filho de agricultores “que não têm economia para ajudar”, possui o ensino secundário e “estava desempregado”. Diz ter chegado a Portugal há um mês. “Fui trabalhar para a montanha”, explica.

A montanha, acaba por se perceber, chama-se Almeirim, onde esteve duas semanas a “cortar abóboras” por quatro euros e sete cêntimos à hora, mais dormida. A comida, garante, era do seu bolso.

Nas duas semanas em que trabalhou na abóbora, Bernardino diz ter recebido 230 euros. Menos de um décimo dos 2360 dólares americanos que diz ter pagado para vir para Portugal e que terá pedido emprestado ao dono de uma loja.

“Tenho de lhe pagar, mas não sei como, porque não estou a ganhar nada.” No mesmo avião que ele, conta, vieram outros oito timorenses, que entretanto saíram da rua: “Pediram dinheiro à família e eles enviaram.”

Quem são estes patrões? Do de Almeirim só sabe o primeiro nome; do outro, aquele que o terá encaminhado para esse trabalho, não diz nem isso – como os outros entrevistados, é cauteloso em tudo o que respeita à identificação desses contactos e à forma como se processou o recrutamento que o trouxe para este país.

Limita-se a designar a nacionalidade do dito “patrão”, que não será nem português nem timorense, e diz não ter sequer o seu contacto telefónico – nenhum dos entrevistados pelo DN assumiu tê-lo.

Aliás, a crer no que um destes timorenses diz, essa pessoa, ou pessoas, costuma vir ter com o grupo: “O patrão diz que quando tiver trabalho chama. Esteve aqui ontem, diz que falta pouco.”

Um relato que parece ir ao encontro do que uma moradora da Rua da Madalena disse ao DN ter observado das suas janelas: “Há algum tempo que tenho reparado na movimentação de grupos de homens baixinhos, que parecem ser timorenses, a arrastar malas e cartões. Há uns dias vi um grupo de mais de 20 destes homens a receber maços de notas de alguém que estava dentro de um carro.”

Concluiu, destas observações, que deveria tratar-se de “tráfico humano”. Como se o Martim Moniz se transformasse naquilo a que, já bem depois da abolição da escravatura, se dava o nome de “mercado de escravos” – um lugar onde se reúnem pessoas sem alternativas, disponíveis, pelas condições miseráveis em que se encontram, para partir, a qualquer momento, para qualquer sítio, por qualquer preço.

Timorenses estão "acampados" no Martim Moniz
Timorenses estão “acampados” no Martim Moniz© Leonardo Negrão / Global Imagens

Mais de três mil timorenses em três meses

Uma situação que a Polícia Judiciária estará a investigar. “Há um inquérito aberto e a avançar”, confirmou ao DN fonte oficial daquela polícia, sem indicar mais pormenores.

Entretanto, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) terá já identificado “11 situações por indícios de auxílio à imigração ilegal e tráfico de pessoas“, em relação com “a eventual existência de práticas criminais relacionadas com o recente aumento de entradas de cidadãos timorenses em território nacional”, que participou ao Ministério Público.

Ainda de acordo com o SEF, “no decurso do ano de 2022 manifestaram interesse para obtenção de autorização de residência para trabalho subordinado mais de 600 cidadãos timorenses”.

À TSF, o SEF tinha já informado de que de 1 de junho a 30 de setembro deste ano entraram pela fronteira portuguesa muitos mais, cerca de três mil cidadãos de Timor-Leste. No ano passado, no mesmo período, não ultrapassaram os 350 e em 2020 (ano de confinamento) apenas 53.

Tal como os cidadãos brasileiros, os timorenses estão isentos de visto para entrar no país, mas apenas em caso de estadas de curta duração – até 90 dias – com finalidades turísticas ou outras do mesmo tipo, tendo nesse caso de apresentar bilhete de regresso e prova de meios suficientes para subsistirem durante esse período, assim como uma morada de alojamento. Já se o intuito é vir para trabalhar têm de obter visto.

SEF não esclarece se houve recusa de entrada de timorenses que tenham chegado a Portugal para estadas de curta duração mas sem apresentar os requisitos necessários. Mas parece óbvio que havia há alguns meses sinais claros de um fluxo anormal de pessoas vindas de Timor-Leste.

“Não há memória de uma situação como esta”

O governo ter-se-á dado conta da emergência “em finais de julho”, admite ao DN a secretária de Estado da Igualdade e das Migrações, Isabel Rodrigues. “Detetámos um grupo em situação de vulnerabilidade no Alentejo e depois em Lisboa, no Martim Moniz, e tentámos encontrar soluções de integração no mercado de trabalho com alojamento digno.”

Até ao momento, adianta a governante, há 670 timorenses identificados, cujos perfis estão a ser “trabalhados”. O que significa, explica, que está a ser feita uma avaliação de cada um para perceber quantos querem ficar e quantos querem regressar a casa, e, dos que querem ficar, que tipo de solução pode existir em termos de trabalho e alojamento.

“Já há 150 integrados no mercado de trabalho. Estamos também a fazer um levantamento em termos de saúde e de vacinação. Uma das nossas dificuldades é a grande mobilidade, porque, obviamente, as pessoas podem ir para onde quiserem. Não é a primeira vez que colocamos um grupo num local e depois vamos lá e já desapareceram vários.”

Isabel Rodrigues suspira. “A situação é muito variada, porque uns têm alguns meios, outros não, uns falam português, outros não. Não é algo que possamos dizer que vai ser resolvido muito rapidamente. Isto exige a mobilização de um grupo muito vasto de serviços – e para percebermos as coisas temos de processar lentamente a informação. Não há memória de uma situação parecida com esta.”

No entretanto, o fluxo continua. Desde que o executivo se deu conta do problema, já terão entrado, como se percebe pelos números do SEF, muito mais timorenses em território nacional. A crer no que foi dito ao DN pelos que estão no Martim Moniz, há chegadas que não têm mais de duas semanas.

“Temos equipas do Alto-Comissariado para as Migrações no terreno todos os dias para tentar perceber o que se passa”, garante Isabel Rodrigues. “E estamos a trabalhar com a Embaixada de Timor, para nos ajudar a entender os motivos disto.”

Novo visto de procura de trabalho pode estar na origem deste fluxo?

representação diplomática de Timor-Leste, que foi chamada pelo governo para fazer parte de um grupo interministerial criado, como explicou no final de setembro a ministra Adjunta, Ana Catarina Mendes (que tem a tutela da Igualdade e das Migrações), para lidar com a situação, não respondeu ao e-mail com perguntas enviado pelo DN.

O jornal queria saber se a embaixada estava em contacto direto com os seus cidadãos que estão a dormir na rua e se, no caso de haver quem quisesse regressar, se se dispunha a providenciar meios para tal ou se já o tinha feito.

Outras questões diziam respeito a eventuais medidas que o país esteja a tomar, incluindo investigações policiais, sobre o aparente recrutamento, com promessas que se revelam falsas, de centenas de timorenses, que acabam, como se constata, a dormir na rua.

“Esta é uma questão que tem de ser muito trabalhada no território de origem”, sublinha Isabel Rodrigues. “Têm sido feitos apelos para que os cidadãos vão aos serviços consulares. E como está prestes a entrar em vigor – em novembro – um regulamento que vai facilitar a vinda de pessoas à procura de trabalho, com um visto especificamente para isso, é preciso haver muita informação, para que as pessoas possam vir procurar melhorar a sua vida sem estarem subjugadas a redes de tráfico.”

E não poderá esta situação estar precisamente relacionada com a proximidade da entrada em vigor desse novo visto, por as redes de tráfico terem identificado essa “oportunidade”?

“Não é uma hipótese que colocasse de lado, a de que este novo regulamento possa dar o sinal de que é mais fácil e que o fluxo possa estar a ser propiciado por isso. Mas o intuito é o oposto, o de fortalecer a imigração segura com este mecanismo, que vai ser mais exigente para os serviços portugueses. As pessoas têm de se dirigir a um consulado para serem avaliadas. É uma resposta que Portugal está a dar no combate à imigração ilegal e tráfico de seres humanos – assim sejam as pessoas capazes de a usar.”

“Não estamos preparados para isto”

O ex-vereador dos Direitos Sociais da Câmara de Lisboa tempera o otimismo da governante. João Afonso, eleito como independente (Cidadãos por Lisboa) na lista do edil Fernando Medina, atual ministro das Finanças, está preocupado: “Não estamos preparados para isto”, admitiu, quando soube da situação dos timorenses a dormirem ao relento na praça do Martim Moniz. E que, de acordo com informações recolhidas pelo DN, seriam cerca de 300 quando, há cerca de duas semanas, a Polícia Municipal e a Proteção Civil da Câmara de Lisboa “limparam” a praça, na qual se observava já degradação e sujidade, e tentaram encaminhar os timorenses para zonas de abrigo.

Só conseguiram instalar 70 no centro de apoio a refugiados da Câmara, junto à Polícia Municipal. “Os restantes acabaram por fugir pelas ruas”, narrou ao jornal uma fonte que esteve envolvida.

João Afonso reconhece que a nova lei é “progressista, justa e adequada à nossa história – de exploração colonial e população imigrante – e realidade demográfica – pais em envelhecimento acelerado com necessidade de cidadãos ativos”.

Duas timorenses, de 23 e 30 anos, chegaram há duas semanas e dormem na rua noutra zona da cidade
Duas timorenses, de 23 e 30 anos, chegaram há duas semanas e dormem na rua noutra zona da cidade© Leonardo Negrão / Global Imagens

Mas considera que “não houve investimento em mecanismos de acolhimento dos emigrantes“. E aponta como prova “a baixíssima retenção de imigrantes, cuja falta é tão sentida na economia”.

Um dos problemas que sentiu quando promoveu o Programa Municipal de Acolhimento de Refugiados, é “a inexistência de mecanismos de articulação entre o local e o nacional”.

Acresce que “nem o Alto-Comissariado para as Migrações nem o SEF viram reforçadas as suas equipas – já para não falar do ‘vazio’ provocado pela extinção/alteração do SEF“.

E teme que, “em caso de crise, se se levantar o fantasma securitárioeste tipo de imigrantes se torne no novo papão. A onda assistencialista das anteriores vagas acomodou a situação, amparou o Estado, mas agora não temos isso – a Covid e a guerra absorvem essa possibilidade”.

O resultado é visível e causa indignação. E leva a perguntar se, com uma legislação humanista como a portuguesa e focada em legalizar os imigrantes, foi feito algum estudo do impacto social, económico e na segurança interna destas medidas. Uma pergunta que o DN fez ao SEF, que não respondeu.

Fonte oficial deste serviço de segurança diz que “no primeiro semestre de 2022, foram concedidos cerca de 133.000 títulos de Residência” – mais 22.000 do que nos 12 meses de 2021, quando foram concedidos 111.311. As principais nacionalidades foram a brasileira, angolana, cabo-verdiana, indiana e italiana.

aguardar agendamento, afirma esta polícia de fronteiras, estão 25 000. Mas várias fontes ouvidas pelo DN acreditam que sejam muitos mais em espera e que este valor apenas diz respeito aos que já foram alvo de parecer positivo do SEF, havendo “centenas de milhares ainda pendentes” e que “podem ainda vir a aumentar com o novo visto para procurar trabalho”. O SEF também não esclareceu se é assim.

Alheios a esta discussão, os timorenses do Martim Moniz continuam por ali, placidamente, quando o DN regressa no dia seguinte ao da primeira reportagem.

Não há rasto de Bernardino e o monte de malas, como o grupo, está muito mais pequeno. A roupa estendida a secar sobre os arbustos foi recolhida, os cartões estendidos no chão para servir de colchão também.

No mesmo sítio onde estava Bernardino encontram-se duas timorenses, de 23 e 30 anos, que informam não dormir ali mas noutro local da Baixa – igualmente na rua, porque “já não há dinheiro para pagar a pensão”.

A mais velha tem um passaporte português emitido em setembro, válido até 2027, e diz estar a tentar encontrar trabalho em restaurantes.

Ambas sorriem perante as perguntas, descontraídas, como se estar num país tão distante, longe da família, a dormir ao relento, não fosse uma experiência aterradora.

Fonte: DN

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